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TRAJETÓRIAS PARA O REAL
APRESENTA

Hu

Por Feller

                             Diante daquela lápide, ele chorava. Não houvera tempo de despedidas, estava longe - como sempre - ocupado daquilo que lhe dava significado, lembrava e levava sua existência para fora de si. Olha novamente a cruz cinza, uma data gravada - números que não lhe diziam nada, apenas o faz questionar o vazio que lhe toma. Um pio ao longe o envolve, queimando-o num uníssono "hu" - curto e profundo – como ele. A companhia lhe apraz, serão quilômetros menos dolorosos.                               

                        Retoma o caminho, um campo de cevada levanta com o peso do sol um odor ocre, purulento – lembra de si. Estaria ele também recendendo assim? Não há mais ninguém aqui, 'sou eu mesmo', ele conclui. Não tem como disfarçar, seu cheiro, cor e abandono o denunciam. Segue pela estrada, que o levaria a casa nova, mas ela somente o lembra de sua solidão, agora mais profunda ainda, receia o que encontrará. Acredita que lá tampouco havera algo de seu, alguns números? Provavelmente, e apenas resultado de um planejamento aleatório dessa cidade perdida, ‘para mim, ainda mais’, lamenta.

                       Na verdade, sente saudades da antiga casa, admite. Fora tão bravamente construída, chegava a lembrar uma fortificação, muros altos, tijolos fortes, ‘sim, os coloquei duplos e, dentre eles, pedras’, não deveriam sucumbir as investidas alheias. Ali era seu reino, não ousara ser descuidado na construção. O que parecera não perceber que é existia uma casa para além de si, para além desse céu e muros e fossos. E a essa casa ele pertencia compulsoriamente, ainda que evitasse admitir: ‘melhor assim, o que não assumimos, não pode nos ferir’, mas ferira e de uma forma definitiva. Por isso sempre evitara a casa nova, melhor a antiga - aqui estou seguro. 

                     'A casa para além de si é essa que não controlamos, certo? ’, ele pergunta ao vento. A resposta vem daquela poeira que seu tom levanta: ‘não, essa casa não controlamos’, resta agasalhar-se, pode fazer frio algumas noites. Entende, por fim, que a ela já pertence - ainda que pouco saiba de sua constituição. Onde estaria a porta? As rotas de fuga? O quarto donde haveria de dormir? São perguntas que não sabe, afinal, nunca ousou assumir sua existência, ‘não é verdade? ’, ela lhe lembra. 

                          Sim, agora, resta confrontado com a dimensão da casa nova, ‘sim, é muito maior que a minha’, e também muito diferente. Aqui não há muros. Como fazem para se proteger?, ele questiona. Desta pergunta não obtém resposta, mas observa que ela ultrapassa a sua e não oferece segurança alguma, será esse seu projeto? Desejar que ali habite sem garantir nada? Parece que sim, aqui só aceitam-se entregas - e totais. Garantias somente aparecem quando não é possível confiar e entregar-se, ele percebe. Na casa nova exige-se, como passaporte de acesso - à viagem que sequer planejara - confiar.  Entende, por fim, a diferença entre garantia e confiança, esta casa ´demanda que se confie, não há garantias - são excludentes, conclui.

                          Todo dia ele surge, aprendeu a confiar. Todo dia ele se vai, aprendeu a confiar. Nessa casa não há certezas, mas compreendemos que lápides e muros fazem parte, ‘sim, a parte que delimita, e incontestemente’. Ele adentrara na nova casa, agora é aguardar – e confiar. O eco da coruja retumba em si, não está só. Está feliz, sorri. Tenta disfarçar, falha.
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