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TRAJETÓRIAS PARA O REAL
APRESENTA
Implacável
Por Feller
Fazia algumas horas que caminhava, feito lava, abria caminho pela montanha de vozes que insistiam em comparecer ao triste funeral. Sim, cada passo dela era ferro em brasa, arrastando as súplicas de vida que cada broto lhe peticionava. Aqui, não havia qualquer chance, lhe comunicaram.
Sabia que um passo em falso fora suficiente para o tombo, parecia não fazer sentido, mas era isso mesmo. Ele a jogara, brutal e implacavelmente - de novo - nas mãos da fúria e ela não lembrava de sua força. Em verdade, até ontem agradecia pela seletividade da memória, lhe garantira esses anos de sobrevida. Ter podido guardar tudo nas gavetas mais altas de sua estante era, até então, a maior das bênçãos. Porém, tal como uma estante abarrotada, era frágil e ruiu, não por si, mas por seu próprio conteúdo, antes amado, há milênios esquecido.
Havia descuidado o caminho, errado o passo, sobrecarregado a estante. Quanto a isso não lamenta, sentia, no fundo, que a vitória somente adviria com a retirada das armaduras e das travas das gavetas. Assim, fora um risco, mas também opção. Sempre soubera das chances de seu retorno, ‘sempre há’, estatisticamente comprovado, mas ela havia vencido as estatísticas, havia vencido os prognósticos, afinal, era segunda filha do milagre, mas nem sempre eles acontecem – e isso a entristecia agora. Julgara ter vencido o controle pelo abandono da razão, acreditava em acasos, destinos e sentires, ainda que no singular. Se arrepende, quer voltar, é impossível, não há mais bifurcação alguma, a escolha já fora tomada – e não por ela.
Amante das lógicas irracionais, errara o cálculo e de nenhum ângulo sua geometria analítica viera em seu socorro. Aqui não há matemáticas que a salvem de si, de seu amado destino e sua nova versão, ‘a antiga funcionava, porque a deixei ir? ’ Não sabia, o silêncio da tela em branco somente a lembrava de um amor tão recente, tão pequeno, sequer coração pudera ter. Havia compreendido finalmente o amor, e por uma cadeia acíclica de carbonos, outra ironia do destino.
Uma sirene ao longe lhe traz de volta a si, o arrepio retorna ao corpo, mas o medo do ontem não é capaz de superar o do amanhã, teme voltar ao limbo escorregadio. Afinal, fora lembrada que um passo descuidado é suficiente, e que não há limite para o fosso. Queria poder redesenhar as palavras, reescrever o roteiro, voltar a definir o enredo de seus sonhos, voltar a viver em seu confortável universo. Lembra, no entanto, que fora ela própria que rogara por uma trajetória para o real. Fora atendida, apenas não entende o motivo de tamanha crueldade. O real chegara, a retirara do breu que a envolvia até então e a imagem formada parecia promissora, como querendo lhe confirmar: ‘tá vendo, o acaso é divino, acredite'. Poderia até ser, mas com certeza saberia ser impiedoso.
Entende que as decisões tomadas -ou não - pouco adiantavam, refletiam vontades alheias a si, os passos que a conduziam não eram seus – perante ele, era nada. Vive a sua imobilidade, enxergando nela a presença do mesmo breu, a cena estava dada, congelada e estampada sem que pudesse pensar em mais nada – ainda que apenas pensasse, e chorasse. A impotência era atroz e também uma novidade, quando rogara pelo real esquecera-se dela, amiga fiel da fé no universo.
Ela não havia deixado migalhas, não era de seu feitio, saídas de emergência não lhe apeteciam, gostava do amargo, afinal, sobre ele não restam dúvidas, com ele, resta tão somente aguardar pelo sabor a cortar os lábios, até que lhe abandonem os sentidos. Prefere assim, ainda que esteja definitivamente abandonada nas mãos do amado acaso, nem sempre afável, definitivamente implacável. Sabe que apenas há de esperar pelo próximo capítulo - esse foi lindo, mas cruel.
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