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TRAJETÓRIAS PARA O REAL
APRESENTA

Dentre dois céus

Por Feller

                     Sempre ali. Quantas vezes passará pela mesma porta e nunca havia visto. Sentado num banco, ele entende a mancha na parede como recado. Sim, é cicatriz. Daquelas taças jamais arremessadas, daquela dor nunca exposta, do sentimento sucumbido ao pó dos tempos. Para lá fora levado sem qualquer consulta, e ele pouco se dera conta. Ali estavam elas, engolidas num único golpe entendido como amor. Era réu.

                       Não podia negar, a mensagem estava dada e ele devia ver esta como os outros tantos sonhos eternamente em preto e branco ignorados até então. Seria esta a melhor opção? Recorrer ao monotemático e etéreo branco - inegavelmente frio? Não sabia, mas, em poucas horas havia tomado a decisão: iria ao pálido continente. Para além de si, outras fantasias o haveriam de aconchegar. Reis, milagres, ousadias étnicas. Tudo o animava, era um horizonte onde, por hora, não se sentaria naquele banco a reviver a mesma náusea.

                      Que haveria de abandonar? As melhores ou as mais odiosas lembranças? As melhores ou as piores versões de si mesmo? Já não era sobre si a decisão, a busca aspirava algo de outros seus. Fugir, sim, encarar também, mas sem necessidade de qualquer confronto. Queria e desejava manter bons sonhos sobre o que vivera. Questionar suas próprias decisões era encarar a mancha, não havia por quê. A fantasia tem seu lugar, as narrativas suas próprias estórias, 6 ou 9, já não importavam, gastara seus argumentos em vão, tudo se fora.

                         Era bom em debate, melhor ainda em determinar seus rumos. Pois ali, naquele breve intervalo, fora definitivo - havia de partir. E sua culminação se aproximava, os 117 discos eternamente catalogados haviam de esperar reencontro.   Mas a questão permanecia, o que levaria daquilo tudo? Que abandonaria? Cartazes nas paredes e fotos pela casa? Retratos guardados em caixas? Quando reveria Miles? Quando voltaria a sentir lar? 

                 E as memórias? Virariam contos, canções ou meros devaneios de um velho a recordar de suas próprias incoerências? Sabe que buscara aparente trégua, não sabia, porém, se ela agora viria de uma aproximação ou da distância. Pela própria índole decidiria pela proximidade, afinal, sabe-se escravo pela dívida do que havia cultivado, pés e corpos entrelaçados – o outro lado da mancha.


                       Entende-se apenas como um outro sem respostas, mas também sem as perguntas certas – a diferença pode soar brusca, mas não chega a acalentar as almas sem oportunidade de compaixão. Havia visto céu, havia visto o chão. A alegria do compasso o faz sorrir, toma outro gole de fernet. Não entendia a necessidade de um abandono total, mas parece não ter muita alternativa. Já decidira, ou haviam decidido por ele, segue sem saber.

                            Parte sua deseja ainda o holograma do que havia de ter sido e não conseguira ser. Mas já não busca resultado, embora anseie por algum conforto. Dera o seu melhor, para si ou para o outro? Pouco importava, haviam criado um só ser. Sim, nada mais importava – havia de ir! Queria, sim, o conforto do não esquecimento, a certeza de que as mãos em uníssonos valeriam mais do que os pés descalços e sujos que hoje o acompanham.

                              Vive agora como um facho de sol, entre dois céus que não reconhecia. Aqueles hemisférios que os separariam, talvez por dias, talvez por almas. Queria estar em paz, mas não entendia como. Haveria o céu de se abrir, outros ventos sobrarem nuvens que, ainda que geladas, aquecessem o coração, sem a necessidade de memórias.
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