top of page
.jpeg)
TRAJETÓRIAS PARA O REAL
APRESENTA
Três badaladas
Badalaram três vezes, anunciando o início do dia, havia que despertar. Ainda que com olhos dispostos a ouvir, neles não encontrava a força que mobilizaria o esforço que representava sair de si. Acredita que nas últimas doze horas permanecera imersa num sonho distante, num caminhar que a afastaram de si, ainda que, contraditoriamente, tanto haviam querido revelar. Novamente eles tocam, a insistência metálica lhe vence, avança sobre os ponteiros do relógio, a direção estava dada.
Anda durante algum tempo, como buscando entender a razão de estar ali fora, ‘ainda é noite’. Desce as escadas íngrimes que delatam seus pés ainda bambos, mas insiste, sente que algo lhe provoca, ‘será o frio?’, pensa, amaldiçoando haver vestido tão pouco, ‘mas também já é tarde demais’, sabe que os agasalhos restavam em camas alheias. Prossegue em seu movimento, procurando não pensar mais, avança alguns degraus e avista a névoa sob a água, denunciando a noite gelada. Na borda daquele espelho, reencontra o mesmo olhar amedontrado que lhe fora revelado na véspera, ele sustentava o pedido de que não o maltratasse mais. Experiências não tão felizes com a espécie, conseguiu o compreender.
‘Sim, eu entendo aquele olhar’, pensava e o gosto amargo lhe subia à boca. Havia gestado universos particulares com diferentes pessoas, os quais, agora, jaziam depositados em suas devidas gavetas. Algumas ficavam lá no topo da estante, trancafiadas e pouco acessadas, sabe que qualquer deslize dos olhos sobre elas poderiam ser fatais, lá em cima estão seguras, ‘e eu também’, confessa. Busca olhar para outro lado, melhor, olhar para frente, ‘apenas para frente’. Assim que, a altura dos braços, a poucos centímetros de si, abre uma gaveta qualquer. Nela somente lhe lembram sobre pensar o sentir, ‘como é fácil’, entende a simplicidade da coisa, afinal, pouco sentimento é nada, ‘não há porque temermos’.
Percebe logo a gritante distância entre a versão teórica e a prática do sentir. Uma delas é romântica, sensível, confortante, a outra aproxima-se do pior dos pesadelos, ‘fora isso que os sinos anunciavam?’, não lembrava bem. Entende apenas que, por algum motivo, algumas gavetas haveriam de ser mantidas bem acima de si, ‘será a exigência da entrega total e absoluta do controle? Ou apenas o medo denunciado pela naúsea que lhe parecera sufocar?’, questiona. Causa ou consequência não importavam mais, já haviam levado parte de si, sua carne jazia morta em alguma podridão escondida, a mera imagem daquele cheiro a repugna, 'que siga longe’, roga. A disposição que o sentir exige não mais lhe atrai.
Um aroma distante lhe convida à mudar de rota, 'sim, melhor não pensar mais'. Os mesmos olhos a acompanham, como que afirmando: ‘Sim, aqui estamos seguros’, eles entendem aquela tela em branco como presente. ‘Aqui o sentir não dói, não é verdade?’, o olhar lhe pergunta, ela assente. Entende que, por fim, são cúmplices, o crime havia sido acreditar e sabem que a confissão pode soar pavorosa, mas lhes tira a culpa. Sente o alívio tal prisioneiro frente a sentença, dela apenas se espera um novo espaço na prateleira, acima ou abaixo? ‘Não somos nos que escolhemos’, lhe informam.
Foram tantos sentires que não havia reparado, mas os sinos haviam inserido fusos em lugares distintos, nele o espaço era apenas espera. É compreensível, com um coração transbordante, as horas pareciam ter diminuido. Não vê problema, o bom dia pintara o sol nas estrelas, escuta novamente as badaladas. ‘Fechem-se as gavetas’, pede. Apenas ísso.
bottom of page