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TRAJETÓRIAS PARA O REAL
APRESENTA
É convite
Por Feller
Havia um estranhamento em tudo isso, lhe era raro todo aquele céu rosa, que mesmo sem ser seu, já era de dois. Pintara o rio, pintara o lago, mas parece que aguarda sua vez para adentrar ao mar dos olhos de espíritos ousados. Assim, que apenas aceita o convite para senti-lo, ‘não há razão para questioná-lo’, ela achava. Parecia finalmente ter tido sucesso na árdua tarefa de subordinar a razão ao sentir, mas ao longe ela parece antever a batida à porta. Um pouco mais de atenção e ela escuta, forte, insistente. Deseja apresentar seu ponto, deseja ser recebida, estará gritando? ‘Não, não, não chega a tanto’, entende que ela não ouve quando gritam.
Do outro lado da porta, entregue às nuvens, quase adormecida, ela insiste em não ouvir. A outra segue empenhada na tarefa, agora pelos sinos da campainha. Ela torna a ignorar, ‘não, não posso deixa-la entrar’, sabe que uma vez dentro terá que a ouvir. Aumenta o som do rádio, o relógio da parede a lembra, sempre há tempo para queda, pouco serviu a morte de Cronos, Hades é justo, mas imperfeito.
Aumentar o som, desvanecer-se em passos, sucumbir ao éter, todas as estratégias ela conhecia. Era sua tendência natural, quase compulsória, saber como invisibilizar qualquer questão que a tirasse do céu que habitava - ou havia sido levada? Pouco importa, mas a lição deve ser aprendida, ‘será agora? ’ Não sabe, refugia-se nos inúmeros subterfúgios que conhecia. Mestre das palavras, rainha do sentir as escondidas.
Ela volta a bater, agora coroada por discursos alheios, aos poucos vai ganhando força, vai abafando a música, espaçando os passos. Restava avaliar a questão, mas ela sabia-se desastre para tal tarefa, lamenta, sabe que aquilo que soa intuitivo é da mais difícil aplicação. Essas tantas vozes a levavam para uma direção, mas percebe que já haviam decidido por outra e lá restaram parados. Sem sequer repararem haviam decidido pelo sentir, sem textos, porque faltaram palavras, sem vozes, porque restaram apenas sussurros.
Nessa aparente encruzilhada, os dias insistiam pelo céu rosa e seu discurso ponderado, enquanto o outro lado apenas pensava, ‘ouvi isso, é assim que é’. Não aprendera a ler entrelinhas, ‘sim, sou literal, infantilmente literal’. Ainda que o céu insistisse no rosa, ainda que a porta não tivesse sequer fechadura, ela apenas questionava o motivo das batidas. ‘Ela sempre esteve aberta’, ele soube escolher.
Assim, ainda que conseguisse ver, não conseguia sentir a motivação das ambiguidades, a nuvem que servia de cama dava aconchego, ‘mas, não, não podemos ficar aqui’, o medo não era de não chegar a ganhar o futuro, apenas repetir passados. Como encarar algo que se encontrava tão distante? A exigente racionalidade insistia em ser ouvida, mas aqui, o sentir era rei e ela vivia plena em sua ficção, ‘mas é real, dá de comer, dá de tocar’.
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