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TRAJETÓRIAS PARA O REAL
APRESENTA
De água e sal
Do banco onde permanecera as últimas horas, não mais pensava em si. O ar carregado de vozes insistia em apontar em outra direção, lembrava a razão de estar ali, era uma dias atrás, hoje entende que sempre fora outra. Quando chegara sabia seu papel, sentar e ouvir, somente ao final deveria dar seu veredito. Assim, ali permanecera todos esses dias, observando os esconderijos nos rostos, as fugas premeditadas que as palavras tentavam incorrer. Ela tudo lia, principalmente ele. Sentia ser capaz de antevê-lo, quem mais o poderia? Ela não sabia dizer, entendia apenas que, para ele, aquele avançar das horas o sufocavam. Aquela sala de janelas minúsculas, de calor insistente e crescente, parecia querer o dominar. Enxergava nele o desejo de poder sair, ambos sabiam que já não podia. ‘Todos perceberiam’, restava ficar.
Ele entendia todo o tempo que havia de passar naquele banco, frente a um público desconhecido, mas com função definida, aliás, seriam eles que o definiriam. O tempo, ali, seria cronômetro, responsável apenas por contar as gotas de suor que escorriam por seu rosto, formando poças nas rugas de seu rosto ainda jovem. ‘Como conseguem pensar nesse calor todo? ’, sentia as têmporas pulsando cada vez mais, o suor lhe escorria por dentre os olhos, lhe era impossível permanecer ali. Alguém declara o recesso, respira aliviado.
Retorna ao quarto, tenta dormir, não consegue. Também ali as paredes cobertas de memórias confirmavam que o tempo é inimigo do tempo, ninguém contra ele pode atirar sua mão, ele sempre chega. Mas, e ele, como havia chegado até ali? Ninguém parecia compreender, ele tampouco queria falar, estava exausto. Já repetira infinitas vezes, como círculos infinitos e concêntricos havia tentado explicar, mas não importava, os ouvidos já haviam decretado sua surdez.
Olha novamente pela janela, tentando adivinhar as horas, ‘agora o céu começa a alaranjar-se, o poente se aproxima’. Essa era a única referência de tempo que conhecera nos últimos meses, e como lhe acalmara poder acompanhar os céus de sua solidão, apenas ali era novamente dono de si. Sabia, assim, que a brisa salgada logo chegaria, até lá, restaria seguir consigo mesmo, com aquele pensamento que parecia haver sempre lhe sufocado. Aliás, era exatamente ísso, qual seria a diferença entre sufocar definitivamente todo esse vento hoje ou daqui 20 anos? Entendia a vida como essa sequência de dias, não acreditava mais em felicidades eternas, ainda que algumas memórias insistissem pelo contrário, ‘mas elas também passam’, é taxativo. Que importaria daqui 10 anos a felicidade ingênua de revisitar as ruas da infância, o fumo do cigarro do avô ou a leveza do peito dela?
Batem à porta, a brisa chegara e se fora, havia adormecido e era hora de voltar, o céu esquecera de lhe informar. Retorna à sala, ‘ainda está fresco, pouco importa o que falarão’. Ainda que assim o pensasse, lhe causava certo incomodo a insensatez dos olhares sobre si. Todos à sua volta pareciam não o compreender, seu silêncio lhes era incomodo, isso era óbvio, mas, pior que isso eram as frases que lançavam: ‘que sujeito sem sentimentos! ’, ‘imagina fazer o que fez e seguir, assim, sem nenhuma lágrima! ’.
O que não entendiam é que ele sempre fora desta forma, não via razão de falar só por falar, somente por isso acostumara-se a passar a maior parte do tempo em silêncio. Aqui não parecia ser diferente, manter-se calado não era uma opção, havia que permanecer calado, sua sentença em breve chegaria. Explicações já haviam sido dadas, não havia o que mais dizer, eles não conseguiriam compreender! De todo modo, para ele, tanto fazia, sabia que partir daí o que se seguira seria uma grande encenação. Sentia-se um mero objeto de disputa entre teses não conflitantes, o crime já havia sido realizado, todos disso estavam certos. Logo, a vida acabaria de uma forma ou de outra, o que fazer até lá era algo que buscava não pensar. Toda vez que o tentara o tormento lhe fizera companhia e fora difícil garantir sua retirada, as batidas nas paredes, os gritos rompendo o ar, o chão que se perdia, pernas que já não sustentavam uma pluma sequer, ‘não, não, não, tudo menos isso’.
Da passagem dos dias frente a ele, eram justamente esses pensamentos que ela parecia poder enxergar. Na aparente inércia que ele sustentava, ela parecia adentrar nesse diálogo intenso, incansável. Percebia que a cada cena sem resposta ele iniciava teses de mil páginas sentidas, sim, ali, o pensamento não lhe era linear, ele gostava disso, ‘não se pode ser sempre racional’. Ela via o que sua aparente calma ocultava: a ira, sim, e na mesma proporção do que fez com que restasse agora neste banco. Conseguira compreender, de seu olhar distante, o prazer que ele sentia ao ver todo esse debate de sentires, no plural, e poder viver a sua intensidade ocultada. Para ela era nítido que, ali, ele vivia seu reino, detinha o controle do que realmente importava, em suma, pilotava seu próprio carro. Podia entender que ninguém mais seria capaz de acrescentar algo a ele. ‘O sentir é a única exclusividade que nos dão direito’, ele pensava, ela o lia.
Assim que, em seu habitat interno, tudo lhe parecia transcorrer a passos lentos, talvez tentativa de ocultar o repúdio que sua coragem lhes causava? Para ele era tudo mais simples, era apenas o calor, ‘esse calor absurdo’. A terra vermelha que parecia gritar, trazendo de seu mais profundo magma o calor que agora lhe rebentava nos poros. ‘Ninguém mais o sente? ’, lhe era impossível, ‘como podem não sentir? ’ A temperatura só parecia lhe atrapalhar os pensamentos, lhe ofuscar a visão. Nuvens de poeira subiam como garras, fazendo daquele suor tatuagem definitiva.
Um chamado, ao longe, lhe rouba de si, o conduzindo novamente àquela sala. Parece que agora querem saber o que pensa de tudo isso. A primeira resposta que lhe vem é: ‘está quente demais, acabem logo com isso’. Desiste. Apenas pondera que o havia feito pelo calor, sim, parece estupidez, mas era apenas o calor. Eu pedi pelo mar, julguei saber o que sentia e rogava isso à cada nascer do sol, vermelho, gritante e conclusivo. Apenas não esperava tanto calor. Porém, não chega a arrepender-se, afinal, sabe que sempre que rogamos por algo, um universo inteiro ajusta-se e traz em sua bagagem o imponderável. ‘Seria melhor não ter pedido nada’, conclui tardiamente, já havia apertado o gatilho, o calor, ‘sempre aquele maldito calor’.
As respostas, infelizmente, parecem não satisfazer o público, eles querem algo mais. Mas ele não tem mais nada a dizer, ‘que meus grunhidos fiquem apenas comigo’, diz não às alegrias envenenadas, como era seu costume. Entende que, no fundo, sempre soubera ‘num amanhã qualquer, serei eu a pender junto ao vermelho do amanhecer’. A brevidade que se aproxima lhe conforta, o satisfaz ter a certeza de levar consigo seu silêncio, a terra estará tatuada, de água e sal. E ela será testemunha.
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