top of page
WhatsApp Image 2022-07-14 at 18.47_edited.jpg
TRAJETÓRIAS PARA O REAL
APRESENTA



O giro da chave


Por Feller
                              O silêncio diante daquela cena parecia assustador. Ela começou a pensar, mais assustador ainda. ‘Calma’, não há razão para isso, lhe falavam, ‘um pouco de realidade não deve causar tamanho estrondo’, mas causava. Havia alguns dias que observava, calada, a movimentação daquele cenário: portas batidas, testas franzidas, olhar colérico e, por fim, choro, sempre ele, o derradeiro abandono de si. Mas, o céu estava seco, não havia mais fuga.
 
                         Era chegada a hora de confrontar todos aqueles habitantes, aliás, porque havia aceitado conviver com todos eles, todos esses dias? Porque não soubera ter voz? Estas perguntas agora a incomodavam. Sempre achava que seu silêncio diante desses cenários advinha do desgosto que tais situações lhe infligiam, ‘sim, coisa desnecessária, deselegante, sim, sim, é feia. ” A estética harmoniosa das aparências deveria sempre predominar, ‘que eu me cale, melhor’, uma hora passa, não mais passou.
 
                             Assim, para ela, até aquele momento, a opção fora não sentir, pelo menos, não demonstrar, não sair de si e encarar aquela escrotidão, ‘é feia’, ela era singela em sua análise. Mas acabou por entender a diferença entre negar e assumir seu sentir, mesmo que abaixo de 50 camadas. Parece tão óbvio, né? Para ela, não. Adquirira o hábito de manter - para tudo - a fachada de um rosto intacto, que tentava evitar, a todo custo, espalhar seus miolos pelas paredes - conseguia? ‘Para quê sujar esse azulejo tão lindo? ’, ela responde noutra pergunta, não, certamente ela não mais queria. 
 
                           Parecia ter tido opção, melhor, parecia haver decidido em apenas calar e aguardar, bastava ocultar o sentir, não é mesmo? A questão que pairava, no entanto, era se ela deixava - mesmo - de sentir. Definitivamente, não. Bem sabemos que ela sente, ‘e muito’, lhe lembram. A negação apenas lhe é confortável, pelo menos até ali. Agora lhe haviam convocado a colocar as casas em ordem. ‘Pode até estar um pouco suja, bagunçada, não’, era seu lema. A chave havia sido baixada, é tarde, não mais sobe.
 
                             Sabendo da ineficiência de seu silêncio, entendeu que havia de falar, ‘sempre é bom falar, né! ’, o aprendizado era recente. Mais recente ainda era acolher palavras alheias, entregar-se a esse momento é assustador, ‘porque fui inventar de falar, olha só, agora tá isso’, abrir-se é tornar-se vulnerável, ela sabia, ‘podia ser fatal’, bem a alertaram. Mas decidira arriscar. Saíra de si, é fato, sabe o quão libertador é, mas sabe também que não mais volta. 
 
                            A chave girara, e com a força daquela voz que saíra definitiva de si, ‘não, não há volta’, é categórica. O céu agora é bruto - é rua, é carro, é prédio, é até roda gigante, só não é mais estrela de céus tombados. Ele insiste pela casa, ela não mais.
  • Facebook Black Round
  • Instagram - Black Circle
  • Twitter Black Round
  • Vimeo Black Round
bottom of page