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TRAJETÓRIAS PARA O REAL
APRESENTA



A MESA POSTA


 
                                  A mesa estava posta, se podia começar. À um canto dela, dois convidados pareciam viver em êxtase a chance do reencontro, ‘há tanto não nos vemos’, constata um. ‘Sim, muito me mudaram’, taxa o outro. As descobertas pareciam muitas, mas muito menores do que os ineditismos que os acompanharam no tempo em que estiveram juntos, acontece, ‘não devia’. Noutro ponto da mesa a coisa se deslocava em total oposição, aqueles pareciam fugir das palavras. Qualquer sílaba poderia ser algoz da entrega do que tanto haviam regurgitado, mal logrado tempo.

                        Este soube construir e fazer morada dentre a podridão. O que sustentava dentro de si agora lhe pertencia, testemunhara cada fala mal dita, cada tijolo mal assentado na obra de um'alma em pedaços. Sim, confessa, eu a habitei durante anos. Quem de fora o via, percebia na voz embargada, no serrilhar dos dentes, o tom que se arriscava num sussurado: ‘Sim, está tudo bem’. Mas não capaz de ocultar de si a ladainha de remorso, raiva e ressentimento. Mas ele nem com isso se importava mais, acostumara-se com a companhia, sabia seu gosto previsível, ainda que amargo. A única coisa que queria agora, admite, era apenas não se importar mais. Não se importar com aquele rosto que seguia insistindo em encontrar o seu, ‘que diabos, olhe para outro lado, não vê que ESTOU BEM! ’. Dado o cenário, decide: ‘melhor apenas disfarçar, daqui um pouco acaba’. Mas o visível aborrecimento insistia em gesticular a cada garfo caído no chão, bebidas trocadas ou no vento que não chegava, apenas questiona: ‘afinal, porque esse pessoal todo ainda não sentou? ’.

                         Sim, era fato, nem todos haviam sentado à mesa. Será distração ou desconforto? Acredita que os dois. Pelo que vê, parte deles, ainda em grupo, pareciam entretidos em contos velhos de um livro distante, cujos personagens chegaram um dia a conhecer. Será que os reconheceriam hoje? ‘Não importa’, que siga a estória. Outros, como que estagnados pela luz que insistia em não abandonar a janela, enfrentavam o receio de irem sozinhos àquela mesa, afinal, ‘ela sequer pode aparecer’.

                      Frente ao som estridente, todos voltam seus olhares em direção ao balcão, donde se via a rua, como se, assim, pudessem entender o motivo de tanta pressa. Não entendem, mas concluem que barulho os salva. ‘Sim, estava ficando tenso’, pensa um deles, sobrecarregado das culpas aportadas por outros seus, já irreconhecíveis. ‘Eu falei, por isso melhor não sentar à mesa’, melhor aqui, de pé, a fuga lhe pareceria mais fácil. No banco dos réus cabe apenas aceitar o olhar condenatório do júri, a sentença final a ser definida.

                                Afora, na rua, já um tanto atrasada, ela é confrontada com o mesmo barulho ensurdecedor. Um calafrio atravessa as baterias de automóveis ensandecidos e a encontra, sem ação, ela apenas sente. Uma mão em seu regaço afirma: ‘não importa, estamos juntos nessa’. A intenção da voz parece encontrar lugar, afinal, sua confiança era inconteste, caberia a ela apenas decidir. Confiar ou não? ‘Aonde essa voz me levaria? ’, questiona. Isso ela não sabia, lembrava apenas que era pessoa de perguntas, sem respostas.

                               Como num filme mudo ela apenas se move, ‘que assim entendam minha resposta’. Ela sabe, aqui é o seu reino, caberia confiar no imponderável. Não havia que pensar, recorda. Assim, ela confia no imprevisível, sabia-se sempre pessoa de sorte, o inesquecível estaria à espreita. E os outros à mesa?, alguém pergunta. ‘Bom, uma hora também hão de sentar e confrontar-se’. Até lá, o céu acompanha a viagem, a cara de lar lhe é familiar, confia.
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