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TRAJETÓRIAS PARA O REAL
APRESENTA
Migalhas
Somente agora questiona porque havia deixado aquelas migalhas pelo caminho. Estava tão certo de si, não haveria razão para mantê-las, seria descuido ou a eterna necessidade de controlar eventualidades de percurso? Não parece ter resposta definitiva, ‘as coisas ainda devem ficar mais claras’, pondera, mas admite que vê ali as poeiras de sua soberba.
Escolhera um trilho, disto sabia. O caminho, aberto no impulso de um único gesto, soava como um sinal, ‘às vezes, eles não são tão discretos', relembra. Assim, seguira numa existência paralela, onde o sentir parecera reinar. Havia dias que se descuidara, admite, afinal, porque tantos meandros nesses gestos, tantas regras, ‘não era apenas sentir que precisava?’. Valera-se dele, mas não lembrava de sua bagagem, ‘sim, sou mar, sabendo-me terra, mas serei capaz de sustentar tamanha densidade?’, a questão pairava dentro dele, 'o mar aberto exige experiência ao navegador'.
Sabia que pratos rasos não saciavam sua fome, aliás, pode até ter sido isso que o fazia ponderar a questão. Alimentara-se de um aparente banquete que, agora, parece nunca ter sido mais que breve entrada, ‘vale a pena aguardar ou será apenas isso mesmo?’. Até então considerava ter feito o suficiente, encarara a barganha entre as disfuncionalidades que habitavam tal jogo, velhos enredos para velhos conhecidos, mas pratos de bistro não o saciariam, ele sabe. Quer desistir, mas prossegue, a balança pende para o seu lado, ‘cabe aguardar’.
No tempo que transcorreria entre o abraço adiantado à torcida e a derrocada da arrogância, parece entender a razão das migalhas, ‘sim, elas haveriam de apontar as rotas de fuga para eventual emergência’. Repara, por fim, nos caminhos clandestinos que atravessavam seu trilho, percebendo que a suposta autenticidade que havia prometido manter ainda não havia desfeito seus antigos tratos com a razão. Dela aproveitava suas conhecidas vantagens, ‘temos que sentir, mas não assim, não de todo, não é mesmo?’. Admite saber que ela sempre andara à espreita, buscando manter um pouco de controle sobre a lenha que abasteceria suas fornalhas, era bem vinda, ele a cobiçava.
Frente a frente com suas decisões, relembra tudo isso, numa mistura de alívio e pena. Sim, Samsara ainda seguia seu curso, nada podemos contra nós, ela é categórica. Mas tal constatação não lhe tira a angústia e a tristeza de saber-se ainda vil e covarde. Quem sabe numa próxima? Por hora, vence só o choque contra a parede. O céu novamente desce, fazendo do amarelo ouro, o ocre, opaco e purulento que o denuncia.
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