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TRAJETÓRIAS PARA O REAL
APRESENTA
Bailarina das pontas rotas
Ele disse: ‘eu já entendi, com você tem que ser assim, pertinho, senão você se vai, como o vento’. A voz pareceu estranha, mas suficientemente forte para depor todas as peças do seu velho armário. Como pôde despir-me tão rápido? ‘Tanto tenho te observado’, respondeu. Alguns dias, poucas horas pareceram-lhe o suficiente para farejar o cheiro do vento que o fogo insistia em ocultar. Ali, ela entendia-se apenas movimento, e ele a lia.
Era acostumada a esconder-se, parecia saber exatamente qual face usar. Foram muitos os caminhos que a ajudaram a definir os sapatos da hora. Com barro, bota; com madeira, tamancos; em teus céus, apenas meus pés desnudos. Apenas nisso acreditava. Mas, e ele, como havia descoberto? Era tão transparente assim? Parecia que sim ou, quiçá, seja apenas mérito do olhar silencioso que a acompanhou, fiel expectador de uma bailarina de pontas rotas e sem plateia aparente, mas que sentia e neste sentir carregava sua própria coreografia. Um público sem rosto e de corpos aleatórios que insistiam em convergir, mas ela não via e, confessa, gostava desta cegueira, estava entregue. Desperta apenas tardiamente à razão, desfeita das sapatilhas, abandonada dos olhares.
Num debate confuso, sempre repletos de perguntas e poucas respostas, como bem o sabemos, ela parecia esquecer das ambivalências que compõe cada um de seus elementos. Não deviam conflitar, lembrou, mas via o céu e pensava, só pensava. Caminhava, sentia-se vento, nutrida, agora, pela lenha das árvores que jaziam mortas num pátio qualquer. Mas parecia não conseguir sentir, não sentia o mar, não sentia nada, acreditava que não podia, afinal, a embarcação está a milhas de qualquer terra.
A luz ameaça ir-se, ‘logo a escuridão a de chegar e você está muito longe de qualquer porto’, alertam. Aperta o passo, em poucos minutos já não enxergaria nada mais, e essa sensação ela reconhecia. Não havia muito o breu cobrira sua janela, caberia chegar a tempo de bater novamente a porta atrás de si. Milimetros avançam como kilômetros, transformando-se numa corrida frenética contra o tempo, “Rápido!, Rápido!, Rápido! A pista vai acabar! O parque vai fechar. A luz vai acabar!’.
Ganha a última ladeira, olha mais uma vez pra cima e a penumbra ultima: ‘era tudo outra fantasia, apenas o dossel de uma floresta mais densa a enganara’. Vai acalmando os passos, retomando o contato com o chão, é terra. Percebe, então, que nesse correr disparado, tal criança ao peito, ela não tinha mais qualquer pensamento - no medo, conclui, perde a razão, ganha os sentidos. Não há qualquer sombra anterior, em verdade, tudo lhe fora retirado, esta pois despida. Isto seria o sentir? Fora isso que ele vira?
A resposta estaria na próxima silhueta. Justo despositada na curva em que a escuridão chegaria, ela encontrou a mão. O sopé de um céu, já abrandado pela floresta, confirmou. É degradé, era aconchego de terra, era força de lar, não havia mais de ser vento.
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